30 de ago. de 2013

28 de ago. de 2013

03/06/11

                                                                               VI

            Eu tinha trinta anos e havia dois que não cortava o cabelo numa tentativa de disfarçar o efeito de uma discreta calvície que aumentava minha testa e raleava meu telhado. Para piorar, vários fios brancos surgiam por todos os lados, principalmente nas têmporas, e se esticavam por cinco ou seis dedos de cumprimento, tamanho geral da peruca crespa e castanha que eu portava. Também cultivava minha barba rala até ela atingir aquele tamanho que pára de crescer e simplesmente vai perdendo a cor, como uma camisa desbotada por excesso de lavagem. Ao me mirar no espelho um dia, notei que já tinha idade suficiente para não me sentir igualmente ridículo quando 15 anos antes fui à farmácia comprar camisinhas que somente seriam estreadas dois anos depois, e decidi que iria sair de casa com o intuito de comprar uma tinta pra pintar meu cabelo sem me sentir vaidoso em excesso ou minimamente metrossexual.
            Entrei na farmácia, me desvencilhei de vendedores, achei o produto, escolhi me baseando unicamente no preço, procurei um que servisse, peguei o que desejava e entrei na fila que se encolhia perto das prateleiras cheias das mais diversos coisas; barracas, ferramentas para jardinagem, peças elétricas, fios, máquinas de raspar cabelos, óleo para carros, veneno para ratos, instrumentos musicais em miniatura, animais empalhados de plástico, brinquedos para animais e bebês. Durante a espera, as pessoas da fila curtiam status, enviavam emails, compartilhavam opiniões online, conversavam em chats e faziam ativismo virtual em seus celulares enquanto outros observavam cuidadosamente a estante de ofertas: dois pelo preço de um, divida em dez vezes no cartão, faça o crediário, abra uma conta, faça o seguro do seu carro, compre um seguro de vida, imprima suas fotos em tamanho real, faça uma camiseta. Ninguém precisava de nada daquilo, mas vários deles discretamente catavam algo e aglomeravam com seus outros bens ainda por adquirir. Um ou outro fazia ligações e conversavam animadamente por minutos sobre assuntos insignificantes cheios de primeira pessoa.           
            Cheguei ao caixa, coloquei o produto na frente do atendente que me olhou a cara e passou a caixa na registradora apitando o preço de R$ 18. Ao que ele disse:
-Só isso, senhor?      
-Sim, só isso. 
-O senhor não quer levar o kit do barbeador x? Está em promoção e você ganha um estojo, um copo e uma loção pós barba. É ótimo... 
-... Você tem esse kit?          
-Não, senhor. 
-Porquê eu precisaria de comprar isso?      
-Todo mundo precisa de barbeador...          
-Estou deixando a barba.      
-... Crédito ou débito?
-Dinheiro, preciso de dois reais para uma nota de vinte.    
            Plim, clack, tic, a caixa se abre e uma nota de dois aparece em minhas mãos junto com o recibo da compra e minha caixa dentro de uma sacola de plástico. Novamente o caixa diz:           
-O senhor gostaria de doar esses dois reais para a causa X?        
-Não, e também não preciso dessa sacola de plástico. Pode jogar o recibo fora pra mim? Tem como você trocar essa nota por quatro moedas de cinqüenta centavos? Obrigado.
            Ele escondeu mal uma cara de discórdia, mas nada o impediu de fazer exatamente como eu havia pedido. Fui embora pensando que aquele seria o dia em que eu pintaria meu cabelo pela primeira vez e ainda me sentia incomodado com a repentina importância que descobri que dava à estética.


22/08/13

V

Estava lecionando. Um cheiro de maconha surgiu no ar. Ninguém disse nada. Momentos após o cheiro acabar, a sala foi novamente tomada por um outro cheiro; plástico queimado, terrivelmente industrial. Todos reclamaram abertamente e expressaram caras feias, tontura e tosse. Fim da aula e todos se retiram calados, aturdidos. Pensando no que seria, saí da escola à procura do fogo e ao passar ao lado de um lava a jato vizinho ouço o seguinte comentário “que cheiro de pedra!”. Volto para a escola, ainda mareada e envolta em conversas e preocupações sobre o que queimava e digo com voz de repórter sensacionalista “esse cheiro é de crack”. Todos se acalmam, cancelam a ligação aos bombeiros, o telefone toca e a vida volta ao normal. 

28/08/13

IV
          
         Nos breves momentos que sucedem o constrangimento sentido quando noto na fala de alguém convicções com data de validade a expirar sendo apresentadas como verdades universais em tom excessivo, cerro meus olhos para não ser cego por tanto brilho, ouvidos seletivos filtram a retórica do discurso, ensaio um sorriso de fachada e diplomaticamente ouço com as mãos nos bolsos ou senão com os dedos todos a estalar um por um, olho para o locutor, pisco lentamente mantendo meus olhos fechados pelo dobro do tempo necessário e não digo nada.

      Claro que não sou Buda e julgo e mordo a língua discretamente até sangrar com cara impassível ainda sorrindo sem mostrar os dentes, mas depois de anos pedindo desculpas e desdizendo coisas de ímpeto e da boca do momento, hoje prefiro respostas monossilábicas com entonação natural, com cuidado para não parecer arrogante, pois atitudes arrogantes sempre causam antagonismo e precedem justificativas.


     O telefone havia tocado e agora você fala e diz e acha que estou perdido -usando o máximo de palavras, mas é da boca pra fora então eu relevo e lembro que você não bebe café pois te agita- foi a minha leitura resumida da ligação na qual fiquei cinco minutos ouvindo o que sente e pensa e tudo que eu disse foi sim, compreendo, arram e oquêi nos silêncios que você usava para respirar. Enquanto eu refletia calado sobre de onde viria conselho opinião expectativa embalado com receio e hipótese vulgar, eu era distraído pelas conjecturas que a mente cria e sua boca teima em dizer.